página em branco
Esta página abriu-se, alva, fria, insensível, mas nunca ameaçadora, estava pronta para começar a preenchê-la de caracteres minúsculos, negros, perfilados militarmente, sem que fossem dadas tréguas ao teclado, ele, também, aprumado, à espera que os dedos vorazes o tocassem. As palavras, essas que refere, nascem primeiro no coração e ali ficam a aquecer-se em ternura ou revolta, em desespero ou alegria, em confiança ou suspeição, filosófica ou intuitivamente. Quando chegam à cabeça são já imagens que rolam como diapositivos à frente dos olhos, da esquerda para a direita, sem parar, a maior parte das vezes como
caminho desesperado
Caminho tão desesperado na europa, caminho desesperado deste miúdo de 13 anos, não, não tenho uma imagem dele, mas confio na vossa imaginação e apresento-o a vós. Muito de olhos como os que passam muita fome, braços esquálidos, muito de ossos, muito de barriga e que enfrentou calmamente o jornalista que o confrontava sobre qual a mensagem que teria para a pessoas da europa: (…)
direitos e deveres para o sr. primeiro ministro
Sr. primeiro ministro, eu percebi finalmente o que quer dizer sobre direitos e deveres quando o ouvi à hora do almoço. O senhor tinha o dever de negociar as medidas de austeridade de forma a ajudar o povo português, mas escolheu o direito de defender os interesses da banca e dos países mais ricos. O senhor tinha o dever de se colocar na pele dos que querem trabalhar e ter um futuro no seu país, mas escolheu o direito de os fazer emigrar e ir mostrar a sua competência para fora de Portugal. O senhor tinha o dever de não aceitar as políticas económicas que aumentam o défice e conduzem a sacrifícios inúteis, mas (…)
O algodão não engana, mas estes números: esganam
Os políticos estão convencidos de que uma mentira, já que repetida muitas se vezes, se transforma numa verdade, na cabeça das pessoas. Mas cuidado, o que acontece é que uma verdade dessas só leva a um caminho: dissimulação, negação da realidade, felicidade de perna curta. Mas o algodão não engana. Vamos então saber como vão os números de Portugal: (…)
custa muito?
Custa muito? vermos uma classe política gananciosa, arrogante, mentirosa e manipuladora que se mantém refastelada à sombra de uma banca que rouba os cidadãos com a governação de políticos sem escrúpulos. Ai pois não. (…)
Ana ou Maria
Ana ou Maria tanto se lhe faz. Ela foi colocada, desde que nasceu, no coração da tempestade. Tudo lhe foi difícil e intrincado, fazendo dela uma rebelde, uma lutadora de causas consideradas justas, independente das preferências individuais de sicrano ou beltrano. E que útil é, ser uma alma assim. Sempre atenta ao que se passa para logo analisar as ficções que vêm de permeio em discursos e contextos impregnados de metáforas. Para Ana ou Maria – tradicionalmente nomes portugueses, sós ou acompanhados – já chega destes recursos expressivos, assim como basta de ficção científica.(…)
Cristina Brandão Lavender
os leitores ligados estão desligados e os desligados ligados?
Os leitores ligados estão desligados e os desligados ligados? Não sei. Duvido até que possamos colocar a questão em termos tão lineares e contraditórios. Nada é só preto. Nada é só branco. Temos uma infinidade de tons de cinzento pelo meio e, por sermos humanos, podemos acrescentar-lhe todas as cores que quisermos. Era meio-dia quando consegui chegar. Peguei no telefone e fiz o download da foto da mulher para o computador central. Entrei na base de dados da Agência de Segurança Nacional e fiz correr o programa de identificação internacional para tentar saber a sua identidade. “Macacos me mordam se não é ela.” Isabel recostou-se na cadeira de olhos fechados enquanto esperava que as fotos com as identidades começassem a surgir através das semelhanças de pontos biométricos do rosto. Há dois anos atrás, a avó Mariana, no leito de morte, fez-lhe prometer que não só a procuraria como a haveria de encontrar. “Atrás do quadro do avô, – com a voz sumida – atrás do quadro do avô.” As lágrimas corriam-lhe e os olhos cinzentos fixaram-me. Apertou-me a mão com uma força que eu desconhecia que tivesse ainda. “É a tua verdadeira mãe. Amava-te, mas foi obrigada a fugir. Prometi-lhe que serias feliz. És feliz, Isabel?” “Muito. Amo-te muito, avó. Deste-me a capacidade de lutar por tudo aquilo em que acredito, a capacidade de sonhar, de ser útil, de rir e de chorar. Sim. Sou feliz. As tuas palavras ao longo da vida fizeram de mim o que sou hoje. As histórias que me contavas estão gravadas no meu ADN. Amo-te, avó. Só isso importa. Só isso vale.” Apertei-a,...teste de gravidez
“Fevereiro. Mais um ser muito desejado se aninhava no emaranhado celular protector, laço bem atado ao coração de mãe. O resultado lido na caneta de teste era definitivo, peremptório, fechado: positivo.
-Mãe, porque estás tão linda?”
Timor
“Gritos estarrecidos ecoam nos céus iluminados de vermelho, chamas galopantes por mãos criminosas ateiam sem pensarem que são seus irmãos, também, os que ali sofrem. Lançam-se numa guerra fratricida, voraz ódio acumulado por várias misérias assentes na mentira de que onde nada há a perder, nem a dignidade se salva.”
Cristina Brandão Lavender
a alma do medo
“Neste tempo que se arrasta contigo, este momento vazio de ódio e de maldade, há um suspiro de alívio. Espero que seja esse o início da coragem que se vence por dentro e de dentro para fora. Se for peço uma alma que sossegue, que abrace o que amo, mas que viva na dignidade de uma humanidade que ainda sinto plena de crueldade e sem juízo. Há dias em que o que o mais quero é uma alma nova.”
nudez – texto autobiográfico
“Tomei então uma decisão para todo o sempre ou para o que resta dele: despir todos os falsos eus que construí involuntariamente, que não interessam, que atraíram uma busca imbecil de aceitação e de aplausos, até compreender porque assim agia. Sabemos, e bem, como isso sufoca e as opiniões são como as cerejas: toda a gente tem mais do que uma, mesmo que uma já fosse demais. Foi então que começaram as descobertas: …” CBL
foste pintada para isso
“Manel da Bica ajeitou a trouxa para todo o dia, encostou-se à parede e colocou-se a jeito. O coto da perna perdida na guerra do ultramar, bem à vista. Aquilo que mais queria esquecer, bem exposto à caridade alheia, num velho cobertor, tal bilhete de identidade esfraldado à compaixão. O casaco e as calças ficavam-lhe grandes e, de tão coçados, rematavam bem o trabalho de mostrar a dor e o mal a estranhos – um quadro perfeito para causar comiseração, dó, pesar, piedade.”
Cristina Brandão Lavender
Zé ia esquecendo
(…) Mataram vivo o Zé. Encafuaram-no naquele túmulo de pequena janela rectangular por onde apenas se via, se noite, se dia. Mas Zé sabia o que queria. E ali, trancado, sem óculos, impotente, molhado, coberto de matéria fecal, viajava de olhos fechados mundo afora, passageiro solitário, partindo em passeio, livre, parindo um planeta novo, numa mega obra: só dele e para ele.
Puta que os pariu: digo-te eu. Esta humanidade não é mesmo grande coisa.
Cristina Brandão Lavender
Pele de escritor
“Lembro-me dele com saudade. Não escrevia por obrigação. Ele escrevia com aquela febre de quem o faz porque tem mesmo de o fazer. Fazia-o com pele de galinha, vestindo a pele dos lobos e de todos os fantasmas que o cobriam, atazanando-lhe o silêncio, a tranquilidade que nunca sentia, tirando-lhe o juízo do momento. Escrevia, escrevendo, assim como vivia: vivendo. Ele queria ser lobo e vestia-lhe a pele: a pele do silêncio, a pele do grito, a pele da palavra escrita. ”
Cristina Brandão Lavender
Não se acredita no amor: ama-se.
Manuela sai do vestiário, bata ainda por apertar, e já se avia com uma fila de cinco pessoas para marcarem ou fazerem exames. Sorrira mal chegara ao guichet, juntara um bom dia, para logo de seguida atender o telefone – mais um utente a marcar – nenhum dia ou hora lhe era a jeito. Os olhos inchados denunciavam muito e o sorriso logo pela manhã uma verdade ainda maior: valentia. Mais um enxerto de pancada, desta vez porque o bife estava frio. Apenas isso: frio. Fechou os olhos e olhou a fila.
casei com uma feiticeira
Há condições de mulher que são muito desconfortáveis. Não que prefiras sentir-te como um homem. Não. Acentas num eixo de verticalidade essa tua feminilidade física e psicológica. Sentes-te, nalguns casos, e após tantos anos, como uma “mulher menos mulher”. Aquela tipologia que vinha nos manuais de zoologia dos teus antepassados e que ainda passou para ti na corrente genética e educacional, criou em ti incompatibilidades profundas. (…)
temos luta
(…)“Muito nos abraçámos nesse período.- contara-me. Sabíamos que mais-dia-menos-dia iríamos estar um sem o outro. Inspirei o cheiro, memorizei os traços da pele, tudo a guardar num chip de memória para usar à distância.”
Raquel continuou sob a ameaça de um despedimento que (…)
europa? qual?
Estou com esses dois terços. Vou na sua jangada e atraco em qualquer outro continente porque qualquer um é melhor que este. Não acredito nesta europa, não acredito nas classes políticas, não acredito nas suas políticas, acredito que existe uma manipulação desenfreada e perigosa à direita e à esquerda, enoja-me a maioria dos comentários que foram feitos e foi isso mesmo que fui lá dizer com o meu voto.
Os Três Des – DM 31 de Outubro de 2012
...Deixo o diabo com Deus
– Amor, tens noção de que as verdades que nos gritam nas televisões e nos jornais sufocam? Naquele semáforo vermelho, o tempo parou, sabes? Estava escrito nele que chegava de inacção, de melancolia e de irritação. Isso não era coisa minha. Por que me esqueci de ti, da vida, do jardim?, de falar com as plantas?, de lhes retirar os pedaços mortos?, – ai como são bafejadas pela sorte – corta-se-lhes pontas secas e revivem, assim sem mais nem menos. Mas nós, nós quando morremos, morremos inteiros, na escuridão, no gelo do subsolo para os bichinhos comerem com sofreguidão.
na sombra dos tempos
Ponham-se finos, espertos e ladinos, com cuidado com as sombras, porque quando o sol vai deixando de brilhar, o que fica é um pedaço sombrio de país com as desigualdades e pronunciarem-se, com um sistema de saúde para quem tem dinheiro, com as leis a não se aplicarem, com um ensino de faz de conta, onde não se pense, e muito menos se critique porque esses, os que o fazem são uns chatos que não deixam o país avançar.
mirar o círculo
“Agora tenho que sonhar em ti. Um olho fechado, outro olho aberto, e miro, pelo círculo do vidro, este teu céu. Fujo da cidade, das janelas de onde não estás, porque sei que estás ali. No foco. No centro do mundo. Por ali. Um já ali tão longe. É por ali que te encontro. Não é sonhar contigo, é mesmo sonhar e assinar em ti todo o meu corpo. Uma assinatura que só tu conheces e reconheces. Sabes? tal como os pescadores da minha terra conhecem o mar e o cheiro dos vendavais que pressentem ao minuto, Sabes? como uma mãe pressente o acordar do seu nascituro antes dele acontecer, Sabes? como reconhecia tão subitamente como abruptamente que ia haver um grande terramoto em qualquer parte do planeta, e to dizia. Sabes? Pois é.”